Um ícone paulistano

O encerramento das portas do Edifício João Brícola em 03 de março de 2023 recebeu destaque na imprensa paulistana.  Era o fim do contrato de sua última inquilina, a Casas Bahia, que ali permaneceu por 19 anos. O edifício, inaugurado em 1939 na Praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal, foi, desde o começo, alugado pela Mappin Stores, referência em lojas de departamentos, fazendo do edifício sua principal casa ao longo de 60 anos, até 1999. Não obstante, mesmo após 25 anos o edifício ainda é lembrado como “o prédio do Mappin”, parecendo presente na memória do paulistano. O edifício, além de um ícone do comércio, é também um relevante exemplar art déco e contribui com a identidade arquitetônica do centro de São Paulo. As lembranças dos “paulistanos” que viveram o Mappin, abrangendo diferentes gerações, classes sociais e regiões da cidade, cada um com suas próprias percepções e memórias, refletem uma memória coletiva multifacetada, que varia conforme a experiência individual e social de cada grupo. O objeto desta pesquisa não é, portanto, uma loja de departamentos ou um edifício, observados isoladamente, mas a feliz união dos dois e os aspectos da memória remanescente desse encontro.

Foto: Autor desconhecido, c.1970. Fonte: Acervo do Mappin em custódia do Museu Paulista.

O edifício-loja pode ser observado a partir da perspectiva do locus, conforme descrito por Aldo Rossi (2001) como um “fato urbano singular determinado pelo espaço e pelo tempo, por sua dimensão demográfica e por sua forma, por ser sede de acontecimentos antigos e novos, por sua memória” (ROSSI, 2001, p.152). O valor do locus pode não residir apenas em suas funções utilitárias, mas no reconhecimento desse espaço como sede de acontecimentos e acúmulo de memórias. Rossi sugere que a arquitetura é a “cena fixa das vicissitudes do homem, carregada de sentimentos de gerações, de acontecimentos públicos, de tragédias privadas, de fatos novos e antigos” (ROSSI, 2001, p.3). A relação entre a forma construída e os eventos ocorridos ali pode ser o que dá ao locus um valor singular (ROSSI, 2001, p.147). O Edifício, que parece se encaixar nessa definição mesmo sendo uma instituição privada e de uso restrito a um grupo social, acabou ocupando um lugar relevante no imaginário, no cotidiano de consumo, assumiu um papel relevante na construção da identidade do centro de São Paulo. Para Manuel Castells (2021, p.54), no que diz respeito a atores sociais, “identidade é o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda em um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalecem sobre outras fontes de significado”.

A fachada nos anos 1980.
Fonte: acervo do Mappin, Museu Paulista
Imagem 2: Propaganda de 1939 fazendo alusão à mudança da Praça do Patriarca para o novo prédio na Praça Ramos. Fonte: PEIRÃO e ALVIM (1985, p. 105)

Sobre memória e identidade, Pierre Nora (1993), afirma que memória é um processo vivido, conduzido por grupos vivos, em evolução permanente e “vulnerável a todas as manipulações”. Para o autor, a identidade não é entendida como um elemento intrínseco à natureza humana ou como um a priori de todo grupo social, mas como uma situação de existência coletiva, evidenciada em muitos momentos históricos e expressa por um sentimento de referência e identificação grupal. Nesse sentido, “lugares de memória” [lieux de mémoire], termo cunhado pelo autor, manifestam o desejo de retorno a ritos que definem os grupos, a busca do grupo que se autor reconhece e se auto diferencia, e o movimento de resgate de sinais de pertencimento grupal. Os “lugares de memória” atuam como pontos de referência que mantêm viva a memória coletiva mesmo diante da dissolução dos grupos que originalmente a sustentavam. A memória associada ao Mappin poderia refletir a ideia de David Lowenthal (1998, apud BATISTA, 2017) de que “a memória forma a identidade“, assegurando uma continuidade histórica que conecta o passado ao presente e ao futuro. Dessa forma, o caso do Mappin pode exemplificar como a arquitetura e a memória se entrelaçam para formar a identidade de um lugar. A transformação do edifício em um espaço cultural pelo SESC, por exemplo, pode reforçar a “união entre o passado e o futuro” (ROSSI, 2001a, p.200), mantendo a memória do Mappin e adaptando-o às novas realidades urbanas. Esse processo de preservação e reinvenção poderia sublinhar a importância de reconhecer e valorizar os loci urbanos como partes vitais da identidade coletiva e da memória cultural de uma cidade. Para Maurice Halbwachs (1990), memória coletiva ou social é distinta da história. A história começa onde a memória social termina, e esta se esgota quando perde seu suporte em um grupo. Em outras palavras, a memória social é sempre vivida de forma física ou afetiva. Quando o grupo desaparece, a única maneira de preservar as lembranças, que são externas aos grupos já extintos, é registrá-las por escrito em uma narrativa contínua, já que as palavras e os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem (HALBWACHS, 1990).

Portanto, a partir da noção de que a memória se perde com o fim do grupo social que lhe dá suporte e que é preciso registrá-la, o senso de oportunidade de momento é um grande motivador para esta pesquisa. Localizar pessoas e suas histórias, após o marco de 25 anos do encerramento da loja, pretende-se ter uma “fotografia” da memória nesse momento, para narrar o que foi a experiência daquele lugar, a partir das daqueles que viveram o seu cotidiano.

Outra grande motivação para esta pesquisa foi a percepção, a partir do olhar “estrangeiro” do candidato, de que paulistanos de hoje, não raro, narram com sorrisos suas experiências naquele espaço, seja pessoalmente, ou escrevendo comentários emotivos em postagens relativas ao Mappin nas redes sociais. Talvez por serem lembranças vinculadas à família, à companhia da mãe, do pai, dos filhos; ou a um estado de satisfação típico dos passeios de sábado, das compras em datas festivas, ou que a distância no tempo simplesmente sublimou, restando na memória a aura mágica de um espaço feito para encantar. Além disso, a força da imagem e do som, repetida nas propagandas de rádio e televisão podem também contribuir com as fixações das lembranças dessa vivência. Dentro dessa perspectiva emotiva, a pesquisa pretende observar ainda a memória multissensorial, pelas características do objeto e as possibilidades de extração a partir dele. A memória olfativa, por exemplo. A lembrança de odores parece carregar mais emoção do que outros estímulos (HERZ, 1998), nos arremessando a pontos específicos de tempos já vividos, tal qual o perfume de alguém querido, o cheiro dos velhos cinemas de rua, ou da livraria preferia, que causam semelhante estado de “retorno”. Robin Collingwood (1935), diz que “a ampliação do saber histórico depende sobretudo de descobrir a maneira de utilizar, como prova, a percepção de determinado fato que, até então, havia sido considerado sem utilidade pelos historiadores […] As fontes só existem como tais ao serem consideradas por alguém do ponto de vista histórico (COLLINGWOOD, 1935; apud PROST, 2009 p.76).

Fonte: acervo do Mappin, Museu Paulista

Não obstante, o inventário de memórias que a pesquisa propõe a partir dessas percepções, não deverá estar dissociado da consciência crítica de que tratamos de um espaço privado e comercial. Uma loja, mesmo que influencie uma grande comunidade, ainda é um espaço restrito a certos grupos sociais, portanto tratar memórias individuais, ou mesmo de grupos como coletivas deve ser feito com cautela. Nesse sentido, é preciso ponderar o caráter heterogêneo do termo “paulistano” que a pesquisa utiliza, estando atentos e as tensões da pluralidade a que remete. Recorrendo a Halbwachs:

“se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles […] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes” (HALBWACHS 1990, p.34)

“Com toda a sua poesia e significado, o relógio é um vestígio insistente e permanente do Mappin” (PITTERI, 2024, p.26).
Foto: Hermógenes M. Vasconcelos, 2023

A partir da consciência dessa multiplicidade pode-se evidenciar possíveis conflitos entre essa memória individual e a memória coletiva, provocando uma reflexão sobre a existência de uma narrativa hegemônica que retrata o Mappin como símbolo de uma era dourada, e que abstrai outras narrativas (BORIN, 2020). Para Pierre Bourdieu (2003) deixar-se levar apenas pelos estigmas dos lugares (positivos e negativos) pode ser uma armadilha para compreensão da realidade “aceitando-os como tais condena-se a deixar escapar o essencial” (BOURDIEU, 2003, p.161). A maneira como um determinado espaço físico apropriado passa a ser interpretado pode levar a consolidação de estruturas mentais “como o espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais que são, por um lado, o produto da incorporação dessas estruturas, o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce” (BOURDIEU, 2020, p.163). Por isso, ao dialetizar narrativas, a partir do registro e interpretação das memórias daqueles que estavam atrás dos balcões, ou daqueles que se limitavam a observar suas vitrines pretende-se enriquecer a leitura daquele espaço. Por fim, a escolha do Edifício João Brícola enquanto Mappin e a memória dessa união, como objetos desta pesquisa, também se justifica pela relevância do prédio enquanto marco arquitetônico e por haver uma lacuna na historiografia que trabalhe o edifício especificamente. O autor já contribuiu com o tema através de um trabalho apresentado no XV Seminário Docomomo, intitulado “Do Mappin ao SESC: A trajetória do Edifício João Brícola” (VASCONCELOS, 2024) em que narra a trajetória do prédio da sua construção até a compra pelo SESC, em 2023. A dissertação de mestrado que este projeto propõe busca aprofundar essa pesquisa, observando-a, agora, a partir da perspectiva da memória, por compreender que a abordagem pode ajudar a entender como certas localidades se tornam simbolicamente densas, fortalecendo a identidade da cidade e como essas lembranças são preservadas, transformadas e transmitidas ao longo das gerações. Esse enfoque pode ajudar a analisar como o Edifício João Brícola, enquanto Mappin, transcendeu sua função original, assumindo o papel de ícone do comércio e bastião de lembranças.


[1] Nascido na Itália, Giovanni Briccola, foi um banqueiro e filantropo, deixou a maior parte de sua fortuna à Santa Casa de Misericórdia e é celebrado pela instituição como seu “maior doador de todos os tempos” (CARNEIRO, 1986 v.1).

[2] A Santa Casa de Misericórdia ou Irmandade da Misericórdia, é uma das mais antigas instituições de assistência social do país, seus primeiros registros em São Paulo são de 1562 (CARNEIRO, 1986 v.1). Ao longo dos séculos acumulou grande patrimônio imobiliário, fruto de doações, cuja renda dos aluguéis é destinada às suas atividades assistenciais.

[3] Auguste Perret, arquiteto belgo-francês, um dos precursores do uso do concreto armado e da estética moderna.